quarta-feira, 6 de abril de 2011

Falecimento (S)


FIM DA VIDA

I
Tem dias que acordo, assim, com medo da vida. Fecho as cortinas, tiro os sapatos, me visto de silêncio e me alimento de lágrimas.

Desligo o telefone, dispenso a empregada e coloco meu gato para fora. Tento afastar o mundo com as mãos enquanto me cubro com as cobertas.

Dizem que é coisa de poeta. Outros, que é coisa de louco. Como se dor fosse privilégio de alguns. Mas o que vejo quando permito que o mundo entre em minha casa, pela tela falante, causa muito mais dor do que eu já sinto. O mundo está rachando em tsunamis e terremotos. Furacões furiosos devastam o que destruímos antes superficialmente. Vejo crianças com fome, outras trabalhando enquanto sonham que estão brincando de escravos. Escuto mentiras vestidas de promessas. Assisto a comerciais que oferecem sonhos. Vejo, assustado, dragões se alimentando da esperança de inocentes.

Percebo que sou uma sombra projetada na parede, distorcida e fraca. Fecho os olhos e busco desesperadamente, no cinema de minhas memórias, lembranças que sirvam de elixir da vida. Penso no meu jardim, com sua jabuticabeira que enfeita os cabelos com brancas flores, como noiva ao caminho do altar, fecunda e acreditando em seus frutos. Sinto o pelo macio de um cachorro feliz, que abana o rabo somente porque eu cheguei. Escuto a gargalhada de um bebê encantado com uma bexiga que lhe escapa das mãos e vai cambaleando como um bêbado pelo teto da sala. Lembro-me dos aniversários festejados com beijos e abraços.

Onde estarão meus filhos? Onde estarão os amigos? Onde estará a vida? Se eles soubessem que os velhos precisam de tão pouco... Uma visita de cinco minutos é o melhor analgésico. Notícias dos netos que fizeram um passeio nos levam a viagens indescritíveis. Tão pouco para nós. Sei que muito para eles. O mundo dos jovens é outro. Cheio de aventuras. Conquistadores, desbravam o mundo.  Mas ainda não são altruístas o suficiente para dividir com os idosos. Com o tempo, perceberão que tudo passa. Não há tristeza eterna. Nem felicidade.

Olho no calendário e controlo as datas marcadas em vermelho. Nos aniversários eu posso ligar, que os encontro em suas casas. E aguardo ansiosamente o dia dos pais, do meu aniversário e do natal. É tudo que resta do ano para mim. Três dias em que eles aparecem. Três dias em que eu abro minhas cortinas, me visto de terno e gravata, e sento-me na varanda para aguardá-los.

II
Talvez sejam agraciados os que lá chegam. Há poucas semanas, perdemos um amigo de cinquenta e quatro anos que teve um ataque cardíaco após jogar futebol por meia hora. Deixou esposa e duas filhas adultas, além de uma netinha. Semana passada, perdemos uma amiga de apenas trinta e cinco anos. Ela deixou o marido e o filho de quatro anos cuidando da bebezinha recém-nascida de quinze dias. Teve um AVC seis dias após o parto, foi internada em coma e não mais acordou. Morreu feliz por ter tido a menina e completado a família que não pode acompanhar. As fotos da gravidez, ultrassom, escolha do nome, cada momento foi compartilhado com amigos pelo Facebook, inclusive a notícia de sua morte. Quando a morte chega tão perto de nós, refletimos sobre a vida. Cada dia é um mistério. O simples fato de viver é um mistério. Seria prudente se celebrássemos a vida e dedicássemos mais tempo às pessoas que amamos e menos tempo ao mundo das coisas.

Todos que se foram até hoje, foram de mãos vazias. Só nos resta preencher o coração. Agende, se preciso for, uma visita aos familiares e amigos. São os únicos que nos amam independente do que temos ou somos. E, quando partem, não temos como voltar nem um dia para dizer o quanto os amamos, fazer uma visita ou um carinho.


TROVA DE ALONSO ROCHA,
que se foi também há poucas semanas, conhecido como “Príncipe dos Poetas do Pará”:

Sem resposta que conforte,
dúvida imensa me corta:
Qual o segredo da morte?
Fim?Partida?Porto?Porta? 


________________________________

Comentários:

Anônimo disse...
Querida, Simone,
Seu texto me tocou profundamente...
Um beijo em seu coração,
N.

quarta-feira, abril 06, 2011 1:10:00 AM
________________________________

 Anônimo disse...
Belíssimo texto, Simoninha. Um pouco depressivo, mas muito belo
Para mim, "Poesia alegre" é sempre duvidosa.
Todos os grandes Poetas são tristes
Parabéns

quarta-feira, abril 06, 2011 1:11:00 AM
________________________________

 Anônimo disse...
Querida Simone,

Obrigada por partilhar comigo, pequena partícula de bruma, seu maravilhoso oceano de palavras e emoçôes.
Sim a vida é assim, talvez porque os deuses, sedentos da sua glória, apenas derramaram sua luz sobre os poetas, não somente de palavras mas também de sentimentos. Com eles o mundo seria certamente muito melhor!
Se me der permissão vou enviar seu texto ( devidamente identificado ) para a minha Escola e vou levá-lo também para uma associação que ajuda pessoas carenciadas.
Com a infinita ternura da amiga,

Ilda

quarta-feira, abril 06, 2011 8:52:00 AM
________________________________

 Anônimo disse...
Muito bom….
Abraços
Rona

quarta-feira, abril 06, 2011 9:00:00 AM
________________________________

 Anônimo disse...
Que benção voltar a receber seus emails, Simone... que falta me fez neste período em que fiquei sem conseguir acessá-los daqui, nem de casa...

quarta-feira, abril 06, 2011 9:16:00 AM
________________________________

 Giovani Iemini disse...
este belo texto estará no blog do bar do escritor em 30/07/2011.
www.bardoescritor.net

quarta-feira, abril 06, 2011 9:55:00 AM
________________________________

 Anônimo disse...
Oi Si, bom dia!!!!!
Que coisa linda essa reflexão....estou aqui no plantão e não deu pra segurar as lágrimas!!!
É a mais pura verdade....o tempo vai e qdo percebemos, não dissemos as pessoas proximas, parentes, amigos o qto os amamos!!
Estamos vivos e ainda há tempo pra não perdemos tempo, não é?
bj
MA

quarta-feira, abril 06, 2011 10:44:00 AM
________________________________

 Anônimo disse...
Simone querida, perdi meu pai há oito meses...a dor é tão profunda que nem consigo falar sobre ela. Todos os dias eu tenho lágrimas que não controlo, uma sensação de vazio na alma que não se preenche e essa saudade cruel, saudade do que foi e de tudo o que poderia ter ainda, se meu melhor amigo estivesse comigo. Tentei expressar meu amor por ele enquanto estava vivo, estive ao seu lado até seu último suspiro, mas mesmo assim ficou essa incompletude absurda que a morte nos deixa. Perplexa, vou vivendo e convivendo com essa dor, sem conseguir expressá-la, como esse texto faz. Obrigada!

quarta-feira, abril 06, 2011 10:44:00 AM
________________________________

 Anônimo disse...
Obrigado pela lição.
Bjs
Ico

quarta-feira, abril 06, 2011 10:50:00 AM
________________________________

 Anônimo disse...
Olá Simone, gostei de seu texto; você escreve muito bem. Não vejo a hora de conhecê-la pessoalmente.

quarta-feira, abril 06, 2011 11:33:00 AM
________________________________

 Anônimo disse...
Cara Simone,
Saudações!
Tocou-me profundamente a sua crônica.
Você escreve muito bem e o seu estilo tem tudo a ver com o meu, romântico, lírico ao extremo, pungente, triste..............
Minha mãe costuma dizer que as minhas poesias são muito tristes, mas é porque sou poeta.
Escreva-me sempre, gostei de receber seus textos.

Carinhosamente,
Darly

quarta-feira, abril 06, 2011 11:34:00 AM
________________________________

 Anônimo disse...
Olá simone, amei o que escreveste. Não tenho tempo pra ler tudo que me enviam, mas tive a sorte de abrir meus olhos para te ler.
Grata
Gerci

quarta-feira, abril 06, 2011 4:10:00 PM
________________________________

 Anônimo disse...
Textos lindos donde escorrem poesias ,como a maioria dos seus textos...Tão doloridos,tão cotidianos,tão reais...Parabéns pelos textos,Coragem pelas perdas...Que Deus possa consolar essa família e seus amigos,beijos,Lis.

quarta-feira, abril 06, 2011 4:11:00 PM
________________________________

 Anônimo disse...
Simone:

Obrigada pela crônica, realmente muito bem escrita, com belas comparações e imagens. A abordagem dada ao tema, partindo de uma pessoa jovem como você, revela sua grade sensibilidade.
Abraços,
Wanda.

quarta-feira, abril 06, 2011 4:11:00 PM
________________________________

 Anônimo disse...
Simone,
Um belo texto. Valeu pela citação ao nosso Alonso Rocha também.
Felicidades,
Abilio

quarta-feira, abril 06, 2011 4:12:00 PM
________________________________

 Anônimo disse...
Que crônica maravilhosa, Simone! Linda, triste e verdadeira...beijo...Henriette

quarta-feira, abril 06, 2011 4:12:00 PM
________________________________

 Anônimo disse...
Querida Simone. Sua crônica é absurdamente a mesma que percorre diariamente o curso de nossas artérias e veias, sem coragem de escorrer para fora. Sem tirar nem por, eu a assinaria. Ou melhor, eu não poria "o gato para fora", porque apesar de gostar demais dos bichanos, não tenho agora nenhum!
Ela é fruto daqueles momentos secos,que se sucedem ao pranto derramado e que dolorosamente encharca o nosso travesseiro. Não não é só coisa de poeta ou louco, não (dos quais como se diz, todos temos um
pouco) é por conta da nossa sensibilidade, que a cada intante é ferida pela insensibilidade do mundo que habitamos.
Obrigada por dizer o que eu não disse. Bjs Carolina

quarta-feira, abril 06, 2011 4:13:00 PM
________________________________

 Anônimo disse...
Olá simone, amei o que escreveste. Não tenho tempo pra ler tudo que me enviam, mas tive a sorte de abrir meus olhos para te ler.
Grata
Gerci

quarta-feira, abril 06, 2011 4:14:00 PM
________________________________

 Anônimo disse...
Na minha opinião, vc é "A" CRONISTA. Parabéns!

Abraços.

quarta-feira, abril 06, 2011 4:15:00 PM
________________________________

 Anônimo disse...
Que lindo! Posso publicar no meu blog?
Bj,
Regina

quarta-feira, abril 06, 2011 10:04:00 PM
________________________________

 Anônimo disse...
Assim é a vida. Assim é a continuação da vida.
Lindo tudo o que você escreveu.
Luz aos que partem e aos que ficam.
Beijo grande.

quarta-feira, abril 06, 2011 10:04:00 PM

Nenhum comentário:

Postar um comentário