segunda-feira, 20 de maio de 2013

Estrupício




Olá, meu nome é Ana, mas você pode me chamar de Aninha.
Eu moro aqui na Penitenciaria do Tremembé, desde 2006. Estou angariando assinaturas para um pedido de soltura.
Vocês devem estar curiosos em saber como eu, uma pessoa tão culta, dois doutorados, fluente em sete idiomas, vim parar aqui.
Pois eu vou contar-lhes a minha triste estória.
Tudo começou quando eu peguei um cachorro para criar.
Lindo e fofo, ele era uma gracinha e parecia um bebê. O filho que eu nunca tive, do marido que eu nunca encontrei.
Mas ele cresceu e com o tempo parecia um bezerro, depois um cavalo e no final parecia um hipopótamo de tão grande e estabanado.
Não era mais possível mantê-lo dentro de casa, vocês devem imaginar o porquê, principalmente se leram o livro “Marley e eu”, que aliás eu acho que deveria ser intitulado “Marley OU eu”.
Voltando ao meu caso, o nome do meu cachorro é Estrupício. Afinal, como livros e filhos, cada um dá o nome que quer ao seu, e depois, o coitado que se vire com as piadinhas o resto da vida. Escolher esse nome foi quase uma premonição.
Estrupício era um cão cheio de energia, e com a estranha ideia de que era um cão cantor ou lobo, vivia latindo ou uivando. Latia para tudo, para gato, pessoas, carros, e até se uma folha caísse, ele corria desenfreado e babando a latir para aquela folha, ali caída, sem vida, sem fazer nada para provocá-lo.
O meu vizinho, um senhor de noventa e dois anos de idade, que era muito preguiçoso, pois nem trabalhava mais, era uma pessoa má e egoísta, e queria que o pobrezinho do Estrupício não latisse de tarde, porque ele queria dormir, enquanto os brasileiros trabalhavam para levar o país ao progresso e desenvolvimento.
Eu tentei explicar-lhe que Estrupício era assim e não tinha como impedi-lo, e ele, muito grosso e mal educado, dizia que eu devia prender o cachorro dentro de casa durante as tardes para ele descansar, e a noite também, porque a mulher dele, outra sobrevivente, não conseguia dormir a noite com os latidos e uivos, que eram de enlouquecer quando a lua estava cheia, devo admitir.
Eu que sou uma mulher letrada, informei ao Seo Zé que já existiam fones de ouvido e janelas anti ruídos disponíveis no mercado, e que se ele não quisesse reformar a casa, poderia sempre mudar-se, havia programas de financiamento para casas populares e planos especiais para aposentados. Além de asilos, claro, para pessoas que, como ele, não mais se enquadravam ao convívio social. Tudo com muita educação, claro, termos rebuscados, com a maior “finesse”...
Foi quando a guerra começou. Seo Zé comprou biribinhas e bombinhas e quando Estrupício começava latir, ele cruelmente as soltava pois sabia que “Estru” tinha medo de rojões, e ficava tremendo o resto da tarde embaixo da minha cama.
Vejam a que ponto chega o ser humano, quanta maldade e egoísmo. Se o Green Peace soubesse, com certeza estaria ao meu lado, me apoiando. Mesmo Estrupício não sendo uma baleia, hipopótamo também nada, e Estru era desengonçado como um, além de excelente nadador. Eu não podia esquecer o portão aberto que ele corria para a piscina do meu vizinho idoso, lá se atirava e de tanta felicidade, babava como um equino. Eu quase chorava de ver a felicidade do meu lindo cachorro, enquanto o vizinho reclamava que ele sujava a água da piscina.
Eu comecei a perceber que seu Zé era mesmo do mal, e que poderia cometer algum ato mais violento, como dar comida envenenada para o meu cachorro o que causaria uma morte lenta e com dores extremas.
Ele dizia que gostava do Estrupício e só queria descansar em paz, mas eu sabia que aquilo era uma tática para me confundir, enquanto ele planejava assassiná-lo, sem dó.
Foi quando eu percebi que era Estrupício ou o Seo Zé. E vocês hão de concordar, que com noventa e dois anos, o Zé já tinha desfrutado o suficiente do planeta terra, e o Estrupício ainda era um bebezão, só tinha dois aninhos, uma vida toda pela frente alegrando as nossas vidas.
Peguei uma espingarda então, e fingindo que atirava num ladrão imaginário, pum, acertei o Seo Zé no coração no primeiro tiro. Sorte de principiante eu sei. E ele caiu na calçada, durinho. Observem como fui boa e ponderada, nada de morte sofrida, com facadas, não, escolhi uma morte instantânea, sem dor, afinal sou uma humanista.
Pronto, agora ele poderia descansar todas as tardes, noites e manhãs, me deixar em paz, e o Estrupício poderia latir e uivar quando e quanto quisesse. E se a esposa dele viesse reclamar, ela seria a próxima. Afinal, eles nasceram um para o outro e haviam prometido viver e morrer juntos mesmo.
É assim que as pessoas educadas resolvem um conflito, eliminando o mal pela raiz, sem discussões, sem bate boca. Isso é coisa de gente ignorante.
A única parte ruim da história é que um vizinho testemunhou o fato e me denunciou à polícia, e eu agora terei que ficar aqui por mais vinte e oito anos, e acho que o Estrupício não vai poder me esperar tanto tempo assim.
Pelo menos tenho certeza que quando sair daqui, a bruxa da esposa do Seo Zé já terá ido encontrá-lo no além, para meu alívio.
***
De repente, acordo com o coração disparado. Que pesadelo, penso eu, aliviada e atormentada ao mesmo tempo, imaginem, os meus vizinhos são uns velhinhos tão simpáticos e dóceis. Mas quando abro os olhos, eis que vejo a grade. Seria a realidade ou estaria sonhando que tive um pesadelo?
Não, não era sonho. Eu estava ali mesmo. A minha irmã gêmea tinha novamente aprontado das suas e eu levara a culpa. Como poderia encontrá-la agora para me vingar? Desde que ela morreu, quando tínhamos quatro anos, ela aparece quando lhe dá vontade. Foi assim desde o útero, onde já me empurrava para ter mais espaço. Se perdia na brincadeira chorava feito louca. Eu bem que acreditei que a jogando na piscina sem boia acabaria com o problema, mas não, ela não aceitou perder nem para a morte.

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