domingo, 25 de dezembro de 2011

Pequenos contos: horror, fantasia e poesia



SOLIDÃO

O vinho caríssimo escorre pela garganta sedenta preparando-o para a próxima degustação.
Do outro lado do bar, a moça pensa:
“- Com esse me deito, estou morrendo de solidão...”
E ele, regozija em pensamentos carnais: “Hoje me deleito, carne nova, sangue fresco!”
Horas depois, ele a deixa desacordada sob os lençóis lilases do seu quarto rosa. Antes de sair, coloca um objeto de sua antiga penteadeira – uma boneca de porcelana – aninhada em seus braços.
Entra no carro, com o sangue-tinto ainda escorrendo pelo queixo.


A NOITE, O CÉU E A MORTE

Abro a janela e percebo que a noite está zombando de mim.
Ela escondeu todas as estrelas sob sua túnica negra.
Só vejo morcegos voejando no jardim.
Irada, penso em lhe exigir que devolva os diamantes que cintilavam em minha vida. Mas me calo.
Tenho medo que  ela responda que eu não os mereço.
Tenho medo que ela mande mais morcegos.


DIVÓRCIO

Civilizadamente assinaram os papéis e se despediram do juiz.
No estacionamento, ele a avistava na calçada. “Finalmente. Estou livre.” Pensou enquanto acenava para ela.
Ela, compenetrada, aguardava os carros passarem para atravessar a rua. Quando viu uma moto, titubeou. Só decidiu atravessar quando um caminhão estava próximo demais para poder frear.
Só teve tempo de gritar o nome dele. O “Eu te amo”  ficou apenas na sua vontade.
No diário dela, o desabafo: “Ouvi-o dizer que pretende me matar. Assim poderá casar-se com aquela puta. Eu o amo demais. Não quero que ele me esqueça nunca.”


OBSESSÃO

Depois que romperam, todos os dias o telefone tocou exatamente à meia-noite. Ela sabia quem era. Conhecia a respiração ofegante. Ficava a escutá-lo por infindáveis minutos, somente para a consciência permitir-lhe dormir em seguida. O motivo ela nem sabia mais qual fora. Ciúme doentio, agressões verbais, humilhações públicas. Talvez, a culpa fosse do destino, como lhe dizia a cartomante. Morar no interior seria a última tentativa. Precisava se livrar da obsessão dele. Não desse certo, já havia se decidido a resolver a situação, ingerindo pastilhas de veneno para ratos. Saiu de madrugada para não ser vista. Quando entrou na estrada, observou pelo retrovisor que um carro se aproximava, ao mesmo tempo em que o celular tocava insistentemente, mostrando o nome dele no visor. Descontrolada, entrou num posto de gasolina à procura de ajuda. Saiu do carro aos gritos e foi acudida pelos frentistas, que não conseguiam entender o que ela balbuciava. Esclareceram que nunca haviam visto o carro que a perseguia, quando a polícia chegou. No celular, não havia registros de chamadas há treze dias. E treze foi o número de pílulas que ela ingeriu sem que ninguém percebesse enquanto abriam o porta-malas, para nele encontrarem um corpo esfaqueado em estado de decomposição. Entre os ossos e restos de carne apodrecidos da mão do cadáver, havia um celular emitindo sinal de ocupado.


CONTO DE FADAS

A noiva chega correndo. Linda! Olhos de esmeralda!
Tão fina e educada! Branca de Neve!
Impaciente, o noivo a espera.
Nos degraus da igreja, ela perde um sapato branco.
Mancando, chega ao altar.
Não sabe que se transformará na Gata Borralheira de olhos roxos.


MULHER ARANHA

Linda! Como podia ser tão linda? Ele perguntou-se ao vê-la de negro, em um vestido longo e esvoaçante que denunciava um corpo esbelto, seios firmes e convidativos em um decote pouco comportado. As mangas largas não escondiam a cintura marcada. Linda, como podia ser tão linda? Ele ainda perguntava-se quando adentrou sua morada, sem compreender como ela havia se interessado por ele, alguém tão sem predicados espetaculares.
Nervoso, teve medo de não satisfazer aquela rainha. Mas ela teceu uma teia de sedução, com música romântica, velas acesas e penumbra. Despiu-se, lentamente a provocá-lo, e ele esqueceu seus medos, realizando todas as volúpias dela e dele.
Extasiado, olhava para o teto e pensava: “Como pode ser tão linda?”. E divagava sobre o que poderia ela – a linda dama de negro – ter visto nele. Nesse momento, ela ressurgiu da cozinha com vinho branco e um pedaço de bolo de chocolate. Ele mal pôde acreditar. Além de tanta beleza e sedução, estava ali – mulher, esposa e mãe – a alimentá-lo após a exaustão.
O bolo desceu-lhe a garganta, acariciando e envenenando o seu ser. Seus olhos reviravam enquanto balbuciava: como podia ser tão linda...


A VIÚVA

I
A viúva chora desolada.
O coveiro mostra, indiferente, as marcas de unha na tampa do caixão.
A viúva desmaia.

II
No dia seguinte, ela vai a uma escola em Manaus.
Inscreve-se no módulo avançado do Curso de Plantas Tropicais.
E sai gargalhando pelo beco imundo.


AS ROSAS E O VENTO

O universo conspirava para que aquele encontro fosse perfeito. Eles combinaram de se encontrar num parque repleto de flores. Queriam assistir ao pôr do sol, que se despediu do dia em tons vermelhos e alaranjados.

Enquanto caminhavam, a noite silenciou em respeito. O vento, ansioso, dançava sublimemente ao redor do casal  em celebração. Eles sentaram-se lado a lado, com seus corpos tocando-se levemente. As estrelas os observavam, refletindo neles cintilantes luzes. Subitamente, ele roubou-lhe um beijo, e o vento parou ruborizado. Como dois adolescentes, fugiram das platéias e procuraram um lugar discreto, onde pudessem se beijar até que não soubessem mais onde começava um e terminava o outro. Uma estrela cadente desacelerou a passagem para poder observá-los. As rosas voltaram-se para a direção deles. As hortênsias curvaram-se, impressionadas com a intensidade daquele encontro. Arrepiadas, exalaram seu melhor perfume, que o vento soprou, presenteando-os. Deitaram-se na grama, como se ela fosse um ninho coberto por lençóis de cetim. A lua, encabulada, cobriu os olhos com nuvens e deixou o casal se amar... Até que juntos explodiram e transformaram-se em um cometa que rasgou o céu e nunca mais foi visto.


O INEXPLICÁVEL

O jardineiro rega as flores na praça. Crianças brincam. Adolescentes passeiam. Aninha conta sobre o primeiro beijo na noite anterior. As amigas aplaudem. De repente, toca o celular: a mãe ralhando pelo atraso para o jantar. Todas correm. Ela caminha sozinha para casa. Na esquina de casa, um senhor pergunta onde fica a igreja. Aninha reconhece o olhar do jardineiro da praça. Pergunta-se como ele veio parar ali. A cabeça dói. Ela cai em sono profundo. Quando acorda,  grita desesperada:

─ Mamãe, mamãe!

A mãe, acariciando seus cabelos, lhe pede para dormir novamente. Vira para o médico e pergunta:

─ Quando devemos contar que ela foi deflorada?


DEPRESSÃO

Hoje é um daqueles dias que acordei com a alma pequena. A imensidão da noite quase me sufocou. Não fosse o canto das maritacas voejando no jardim, eu teria virado ao lado e dormido o dia todo. Quando acordo, procuro no mundo dos homens o pote de amor até o fim do dia. Mas só encontro solidão. Meus pensamentos ecoam tão alto, no vazio da minha vida, que sou vencida pela desesperança.

Procuro forças para me levantar e sair de casa, apesar da alma pequena. Vou à cidade. Busco algo em algum lugar. Não sei o quê nem onde. Já passei da idade em que sufocamos as mágoas com compras inúteis. Persigo a felicidade alheia, na esperança de ser por ela contaminada. Entro em uma livraria de esquina.

Estou numa viagem além da minha ilha, onde vivo tão sozinha. Busco paz. Decido, então, escolher um livro e me sentar no sofá macio. Esqueço-me do sofrimento por um instante. A poesia acaricia meu coração, levando meus pensamentos a lugares repletos de beleza e magia. Preenche o vazio, que amanheceu em mim, com cores e perfumes em forma de versos. Volto à casa vazia e sinto lágrimas escorrerem pelo meu rosto marcado, mas são por contemplar as estrelas penduradas no varal da noite. Minha alma desencolheu. Adormeço, segurando as mãos de Drummond, sussurrando lindos poemas só para mim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário